Que nosso nome não caia no esquecimento | 2021
Curta documental realizado por ocasião de exposição individual na Galeria Anita Schwartz, Rio de Janeiro, Brasil
Filmagem: Ricardo Canário e Guilherme Bezerra
Direção: Fabiano Araruna
Edição: Fabiano Araruna e Julio Martins
Texto curatorial: Bianca Bernardo
{"time":1750184196945,"blocks":[{"type":"paragraph","data":{"text":"No princípio, não existia a América. Sempre fomos muitos, diversos, imensos. Quando chegaram os exploradores, logo redigiram cartas e livros contando que haviam feito uma grande descoberta e que conquistaram uma “ilha” no meio do oceano Atlântico."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Das perversas ironias que nos rodeiam desde o início dos tempos modernos, uma delas diz respeito ao próprio nome escolhido para renomear a terra sequestrada. Marcando como uma cicatriz profunda, da alcunha de vergonhosa exploração, surge o nome de um país Brasil. Um passado ferido que fere como brasa ardente aos olhos dos guardiões da floresta e que continua seu rastro de destruição, expropriação e desmatamento, não se perguntando quando é o tempo de parar, porque nunca deveria ter acontecido. Mas os olhos dos guardiões da floresta nunca deixaram de arder."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Na exposição Que nosso nome não caia no esquecimento, primeira individual de Renato Bezerra de Mello na galeria Anita Schwartz, o artista enfrenta com sensibilidade a difícil tarefa de olhar para o seu tempo através dos prismas que contam a história da violência que, há mais de cinco séculos, silencia vidas e culturas em resistência. Renato impregna então a exposição com a cor vermelha para evidenciar um Brasil manchado pelo sangue e pela brutalidade constante das formas de ganância, de injustiça social, do preconceito e da intolerância."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"O desejo por investigar a noção de uma abordagem da hospitalidade como acolhimento do outro, a partir do reconhecimento do estrangeiro que reside em si mesmo, é um dos apontamentos abissais da obra Não somos um, somos vários. A compreensão de que a hospitalidade se faz entre relações paradoxais da convivialidade com as alteridades expande os sentidos de uma ideia fantasiosa da mesma como acolhimento dócil e absoluto. A importância da percepção do gesto da hospitalidade, como explica Alain Montandon, consiste, antes de tudo, em afastar uma hostilidade latente na visão que se faz do hóspede/estrangeiro. Na composição da obra, o artista se apropria de antigos cartões de visita fabricados para os seus pais e imprime em seu dorso os nomes de mais de 1.100 povos indígenas. O mapa do Brasil refeito no espectro memorial do seu território original, conforme listagem de pesquisa do Museu do Índio do ano de 1998, no qual confrontamos os horrores do etnocídio no impacto do projeto colonial."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"A inquietação de Renato diante da atual crescente banalidade das ameaças de morte no Brasil transformam-se em desenhos abstratos e simbólicos, linhas, manchas e garatujas. Na exposição, um caderno sem costura está pousado sobre a mesa, na qual pode-se perceber mandalas vermelhas, em diferentes tamanhos, produzidas traço a traço, folha por folha. Alvos da Violência, é uma obra que representa a memória de cada uma das mortes por armas de fogo no Brasil, ano a ano, seguindo os dados oficiais do Mapa da Violência, disponibilizados publicamente desde 1980."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Em Cadernos do Confinamento, o artista dedicou-se a desenhar em pequenos cadernos os sentimentos de desassossego diante da pandemia do Covid-19, recorrendo ao universo das inscrições para traduzir em gestos o medo e a tristeza vividos coletivamente desde o primeiro decreto de distanciamento social e lockdown. Em paralelo, Renato continuou a desenvolver a série A História explica, mas não justifica, iniciada em 2020. Um conjunto de 91 desenhos são dispostos na galeria como a barra vermelha dos noticiários de jornalismo que, ao longo dos últimos quase dois anos, apresentaram diariamente o incontrolável número de mortes pelo Coronavírus. Após apuração das investigações, é revelada a confirmação do grande descaso e incompetência do governo em lidar com a pandemia no Brasil, o que trouxe um sobrepeso de revolta e indignação ao inenarrável sentimento de luto por todas as vidas perdidas e às milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas. Diante do desespero e do pranto comum, Renato verborragia os gritos e as palavras de levante, entoadas em coro nas ruas, no íntimo da existência, desde as janelas."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Não há modo de romantizar a violência sangrenta do dia que se fez noite eterna. Vamos buscando, como Renato, práticas de cura e cuidado, entre fabulações e processos de transmutação através da arte, atravessando as opressões e o adoecimento pelo cultivo ancestral dos modos de viver em liberdade. Seguimos assim a travessia, imaginando e sonhando futuros possíveis, adiando o fim do mundo por mais um dia."}}],"version":"2.18.0"}
Que nosso nome não caia no esquecimento | 2021
Short documentary created for the individual exhibition at the Galeria Anita Schwartz, Rio de Janeiro, Brazil
Camera & video: Ricardo Canário and Guilherme Bezerra
Direction: Fabiano Araruna
Editing: Fabiano Araruna and Julio Martins
Curatorial text: Bianca Bernardo
{"time":1750184205442,"blocks":[{"type":"paragraph","data":{"text":"In the beginning, there was no America. We have always been many, diverse, and vast. When the explorers arrived, they soon wrote letters and books telling of their great discovery and of how they had conquered an “island” in the middle of the Atlantic Ocean."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"One among many of the perverse ironies that have been around since the beginning of modern times regards the very name chosen to rename the abducted land. The name Brazil emerges as if branded by a deep scar under the sign of shameless exploitation, its past wounded by a burning coal, under the watchful eyes of the guardians of the forest, leaving continuous tracks of destruction, expropriation and deforestation, never asking whether the time has come to stop, for it never should have happened. But the eyes of the guardians of the forest never ceased to sting."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"In Que nosso nome não caia no esquecimento (May our name not be forgotten), Renato Bezerra de Mello’s first solo exhibition at Anita Schwartz, the artist sensitively tackles the demanding task of observing his own times through prisms which tell a story of violence that, for over five centuries, has stilled resistant lives and cultures. Bezerra de Mello thus impregnates the show with the color red to evince a Brazil stained by a flow of blood and the constant brutality of forms of greed, social injustice, prejudice and intolerance."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"The will to investigate the notion of an approach to hospitality as a welcome of the other (and based on recognition of the foreigner that lives within himself) is among the abyssal insights of the work Não somos um, somos vários (We are not one, we are many). The understanding that hospitality takes place between paradoxical relationships of otherness expands the meanings of such a fanciful conceit as docile and absolute welcoming. According to Alain Montandon, the importance of perceiving a gesture of hospitality consists, first and foremost, in rejecting a hostility that is latent in the view of the guest/foreigner. To create the work, the artist appropriated old visiting cards made for his parents and printed upon the reverse side of each one the names of over 1.100 Brazilian indigenous peoples. The map of Brazil is remade along the spectrum of memory of its original territory, in consonance with a research list prepared by the Museu do Índio in 1998. In it, we confront the horrors inflicted by ethnocide as a motor of the colonial project."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Renato’s malaise in light of the growing banality of death threats in Brazil is transformed into abstract drawings and symbols, lines, stains and scrawls. In the exhibition, an unbound notebook sits upon a table; upon it red mandalas of different sizes may be perceived, line by line, page by page. Alvos da Violência (Targets of Violence) represents the memory of each death by firearms in Brazil, year by year, accord to official data gathered from the Map of Violence (available to the public since 1980)."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"The artist’s small Cadernos do confinamento “Confinement Notebooks) are filled with drawings about feelings of unease in light of the Covid-19 pandemic, all of which resort to the world of inscription to translate the collective fear and sadness experienced as of the initial orders of social distancing and lockdown. Simultaneously, Renato continued to develop the series A história explica mas não justifica (History explains but does not justify) that he began in 2020. A group of 91 drawings are arranged in the gallery in the manner of the red news tickers of television journalism we watched over the past two years or so, a daily record of uncontrollable deaths by Coronavirus. Following extensive investigations, the Brazilian government’s colossal negligence and incompetence in handling the pandemic engendered a crushing surfeit of revolt and indignation to the indescribable sense of mourning for all the lost lives and thousands of avoidable deaths. In the face of sweeping despair and wailing, Bezerra de Mello voices the cries and words of upheaval chanted in chorus in the streets and in private lives from windows."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"There is no way to romanticize the bloody violence of daylight that has become eternal night. Like Bezerra de Melo, let us continue to seek out practices of cure and care in stories and processes of transmutation through art, surviving oppression and illness through the ancestral cultivation of ways of living in freedom. Thus, we must continue our crossing, imagining and dreaming of possible futures in order to postpone the end of the world for yet one more day."}}],"version":"2.18.0"}