O que a gente não tem coragem de jogar fora | 2019
Curta documental realizado por ocasião de exposição individual na Galeria Inox, Rio de Janeiro, Brasil.
Fotografia: Wilton Montenegro
Produção audiovisual: a&f art films
Texto curatorial: Bianca Bernardo
{"time":1748290539652,"blocks":[{"type":"paragraph","data":{"text":"Imagine voltar à casa da infância e encontrar um espaço vazio que não pode ser preenchido. No espaço onde o silêncio ganha densidade ruidosa e abafa as palavras dentro do peito, a voz que desejamos escutar não vive."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Estranha sensação é precisar nascer de novo, dessa vez sozinho no mundo, grávido das formas de si. Para aquele que sempre quis preservar o instante, eis o desejo secreto. Quem nunca sonhou em parar o tempo? Somos nós a girar a ampulheta ou estamos mergulhados nos grãos de areia, deslizando por momentos irreversíveis, cada um a percorrer o próprio caminho? Na antiga sala de visitas, os móveis permaneciam resguardados por panos, mantendo a função de impedir a impregnação constante da poeira. Um mistério habitava esses objetos à espera do acontecimento: o dia para serem descobertos, e, no toque sutil do corpo sobre a mobília, saber que reside a promessa de intimidade com o mundo. No exercício de sonhar a memória, a casa da infância perdida na noite dos tempos profundos pode ser resgatada, assim como um barco que não desaparece no naufrágio e está apenas adormecido."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Na exposição individual O que a gente não tem coragem de jogar fora, o artista Renato Bezerra de Mello partiu de objetos e imagens guardados ao longo de sua trajetória, trazidos da infância, recebidos como herança ou mesmo produzidos durante seu processo de formação artística na França. Entre desenhos, esculturas, bordados e gravuras, o artista reinventa a memória através do gesto que busca tanto estancar o tempo, quanto propor novas formas para o corpo. Por meio de costuras que contornam para libertar a presença de sua ausência, o artista corajosamente se lança ao encontro do desejo de reparação, compreendendo que toda lembrança guarda em si uma cerimônia de adeus."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"O encantamento na obra de Renato Bezerra de Mello começa no mergulho em sua coleção de afetos. Guardar é importante. E com delicadeza, sua metodologia de juntar e reunir objetos como próteses da memória, evidencia a percepção da expressão simbólica que atravessa e ressignifica a materialidade. A metáfora do espaço íntimo figurada em cada objeto revela, não apenas uma memória particular, mas sobretudo aponta para o complexo conjunto de interações que se dão sempre no campo social. Os objetos não estão destituídos de uma experiência intrínseca e são capazes de preservar o tempo das coisas vividas. Na produção de sua linguagem artística, Renato cria relações com sua coleção na potência de expandi-la e transformá-la. Em seu ateliê, o artista escuta o verbo contido dentro do tempo vivido de cada objeto, que por meio da ação de seu intento, são movidos para uma nova vida como obras de arte."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"Nas páginas que introduzem os capítulos de um livro encontrado na casa de sua mãe, as minúsculas manchas de fungo chamaram a atenção do artista. Encontrou também um rolo de tecido fabricado na antiga confecção da família, que apresentava as mesmas pequenas manchas de formas irregulares. Usando uma paleta de cores variadas, tanto nas páginas de papel quanto sobre o tecido, o artista começou a desenhar contornos ao redor das manchas de fungo, com lápis de cor e linhas de costura. Pacientemente, o artista trabalha sobre esses materiais, com o desígnio de uma luta inglória contra a morte. No imaginário do tempo eterno, o artista estanca a projeção dos fungos com seu gesto criador, e instaura a beleza da vida no contorno da forma que constrói os limites necessários para impedir a decomposição. No arranjo que costura botões fora de suas casas, o artista desorienta a função do vestir-se para formar um grande cordão que atravessa o espaço, no qual encontramos a nós mesmos, os nascituros, e o nosso sentimento compartilhado de solidão e existência. Há muitos momentos em que não temos um modelo a ser seguido, e que habitamos a liberdade ao deixar surgir o descontrole. Na série de esculturas feitas com parafina e linha, Renato Bezerra de Mello inventa novas formas para órgãos sem corpo, como signos abertos ao desejo do ser que caminha para a descoberta de quem se é. Ao envolver com a linha os moldes de mãos produzidas em parafina, o artista descaracteriza a figura do corpo humano conhecido em sua exterioridade e normatividade, nos convida para entrar dentro do corpo e permitir a imaginação de novos órgãos, germinados pelas formas intuitivas. A viagem pelo interior do corpo é como entrar dentro de uma casa íntima e abrir os seus cômodos e armários. Na gaveta, estavam guardadas aquelas cartinhas antigas, escritas à mão, que cuidadosamente protegidas ao longo dos anos estavam envolvidas pela latência da espera. Um dia, o artista achou as cartinhas como quem descobre um tesouro escondido, tão raro quanto a arquitetura de uma caligrafia sagrada. Foi então que ele perguntou: por que vocês existem? E as cartas responderam: para não esquecer."}}],"version":"2.18.0"}
O que a gente não tem coragem de jogar fora | 2019
Short documentary created for the individual exhibition at Galeria Inox, Rio de Janeiro, Brazil.
Photo: Wilton Montenegro
Audiovisual production: a&f art films
Curatorial text: Bianca Bernardo
{"time":1747083468529,"blocks":[{"type":"paragraph","data":{"text":"Imagine returning to your childhood home only to find an empty space that cannot be filled. The voice you long to hear does not live in the space in which silence takes on a noisy density and muffles the words in our throats. The need to be reborn – alone in the world this time around, pregnant with one’s many forms – is a strange sensation. Such is the secret wish of one who has always wished to preserve the instant. Who has never dreamed of stopping time? Is it we who turn the hourglass upside down or are we immersed in the grains of sand, slipping through irretrievable moments, each one traveling its own path? In the former sitting room, the furniture remains safely covered by drop cloths that continue to prevent continuous impregnation by dust. A mystery has inhabited those objects, awaiting the event of the day of their discovery, knowing that the promise of intimacy with the world resides in the subtle touch of body upon furniture. In the exercise of dream memory, the childhood home lost in the deep night of time may be rescued like a boat that does not disappear in the shipwreck but is only asleep."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"The starting points for artist Renato Bezerra de Mello’s solo exhibition O que a gente não tem coragem de jogar fora are objects and images from his trajectory, some of them kept since childhood, others inherited or even produced during his art education in France. In drawings, sculptures, embroideries and prints, the artist reinvents memory through gestures that seek both to staunch the flow of time and to propose new forms for the body. By means of stitches that outline in order to free presence from absence, the artist bravely sets off upon his encounter with a desire for reparation, understanding that every remembrance contains within itself a farewell ceremony."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"The allure of Renato Bezerra de Mello’s work begins when we plunge into his collection of affections. Keeping is important. Delicately, his methodology of conjoining and gathering objects as prosthetics for remembrance evinces the perception of symbolic expression that shoots through and re-signifies materiality. The metaphor for intimate space reflected in each object reveals not just a particular recollection, but points above all else to the complex set of interactions that always occur within the social sphere. Objects are not devoid of intrinsic experience and are able to preserve the time of things lived. In producing his artistic idiom, Renato creates relationships with his collection through the power with which he expands and transforms it. In his studio, the artist listens to the words contained within the experienced time of each object; by means of the action of their intent, they are moved on to a new life as works of art."}},{"type":"paragraph","data":{"text":"The artist’s attention was drawn to minuscule fungus stains on the introductory chapter pages of a book found in his mother’s home. He also found a bolt of fabric made in the old family textile factory, that had the same small irregularly shaped stains. Using a palette of varied colors, both on paper and on fabric, the artist began to draw outlines around the fungus stains, with color pencil and sewing thread. Patiently, the artist works on these materials, in an inglorious struggle against death. Within the imagination of time eternal, the artist stops the expansion of the fungi with his creative gesture and instils the beauty of life within the boundaries needed to prevent decomposition. In the arrangement that sews buttons outside their buttonholes, the artist disorients the function of dressing to make up a great line crossing the space in which we find ourselves, we, the newborn, and our shared feeling of solitude and existence. We quite often have no model to follow, so we inhabit the freedom of allowing lack of control to emerge. In the series of sculptures made with paraffin and thread, Renato Bezerra de Mello invents new forms for disembodied organs, signs that are open to a desire to be that moves towards the discovery of who we are. By enveloping paraffin molds of hands in thread, the artist strips from its features the figure of the human body’s exteriority and normativity, beckons us to enter the body and allows us to imagine new organs germinated by intuitive forms. To travel inside the body is akin to entering a secret house and opening its rooms and closets. Carefully protected, those handwritten notes were kept inside the drawer; over the years they became enveloped by the latency of waiting. One day, like one who discovers hidden treasure, the artist found the notes, rare as the architecture of a sacred calligraphy. It was then he asked: why do you exist? And the letters replied: not to forget."}}],"version":"2.18.0"}