Glória Ferreira

RECUPERAÇÃO DE SOBRAS

É no universo das memórias, das cópias e reproduções que se desenvolve o trabalho de Renato Bezerra de Mello, constituindo o que poderíamos chamar de uma “memória ficcional”. Fotos garimpadas nos álbuns de sua família, daquelas extensas e conhecidas famílias nordestinas, compõem Visionários. Genealogia alguma, no entanto, é fornecida. Quem será a tia, o avô, o tio, a prima ou a madrinha da tia?

O álbum, tão importante na foto familiar, é aqui substituído por dezenas de monóculos. Resquícios de certo modo de apresentação entre os muitos da fotografia desde sua invenção, estes, de certa forma, anunciam a nova maneira de vermos essas imagens, como algo da ordem do visionar, termo que integra a temporalidade que a constitui. O que, aliás, o título do trabalho, conjugando diferentes sentidos, não deixa de evocar.

O retrato, esse espelho narcísico como acusava Baudelaire, foi a base do primeiro grande momento de expansão da fotografia, das cartas de visita às carteiras de identificação. Identidade tanto oficial, representação que assegura, como assinala Louis Marin, que em nossa própria presença somos nós mesmos, quanto da construção de um passado onipresente, espelho igualmente, com suas ilações subjetivas. Em Visionários, a reprodução dos retratos em slides em preto e branco (positivos, transparentes…) uniformiza-os em uma mesma escala: a dos monóculos. O caminho proposto para visioná-los é aleatório. Passamos de um para o outro como em um mapa sem coordenadas. Se o mapa constrói mais do que representa o real e, assim, faz circularem as significações, o jogo entre mostrar e ocultar priva a fotografia do que supostamente ela viria reforçar em relação ao que, desde seus primórdios, seria o destino das imagens: tornar presente a ausência. Jogo, sem dúvida, inerente à representação, mas na qual, pela subtração de qualquer informação verbal, a memória familiar reconstruída se torna ficção.

A ausência, em sua intrínseca relação com a presença, subsume também a apresentação de Sou pai e amigo. São cartas de seu avô, o Coronel Othon, ao filho que se encontrava nos Estados Unidos nos anos 40 e que posteriormente as entregou a Renato, seu único filho homem, como um tesouro a não ser revelado.

Os dispositivos operacionais dos dois trabalhos guardam traços em comum que, de certa maneira, perpassam a produção do artista. A exploração poética das memórias e lembranças, traços da história da ação humana, está igualmente presente, por exemplo, em seus bordados com nomes das pessoas que o serviram ou a sua família, ou ainda dos rios que se entrecruzam em uma grande bacia hídrica imaginária – territórios sem divisa, geografias sem localização, histórias não lineares.

As cartas, cerca de 50, datilografadas por Renato em uma máquina de escrever alemã encontrada em uma rua de Paris (até mesmo os meios técnicos utilizados, como os monóculos, trazem a marca da memória…), são destinadas as suas irmãs. Cinco cópias foram reproduzidas com o uso de papel-carbono, forma sob a qual são apresentadas. Se o carbono, como instrumento de reprodução, está quase em desuso, como elemento químico evoca a escrita, pelo grafite, o tesouro, como diamante, bem como sua cadeia de relações em todas as substâncias orgânicas e, assim, faz presentes as reverberações simbólicas, incluindo a da nova cadeia de relações familiares a guardar doravante o tesouro. O segredo, contudo, embora exposto, permanece, pois apenas os vazados deixados pelas teclas da antiga Zimmermann permitem decifrar palavras das cartas/ícones, instaurando um permanente vaivém entre o legível e o visível. Renato é de Recife – onde apresenta esses trabalhos pela primeira vez no Brasil –, cidade em que sua família, trama e substrato de seus trabalhos, permanece uma referência. Fotos de antecedentes seus, por exemplo, estão reproduzidas no livro O retrato brasileiro, documentos, segundo Gilberto Freyre, de sociofotografia, posto que socioculturais, além de físico-antropológicos.

A expressão “mitologias individuais”, cunhada por Harald Szeemann na Documenta de 1972, refere-se à noção de uma história da arte que não se orienta apenas por critérios formais, mas como representação de si. Mitologias que são, de diferentes maneiras, constitutivas de muitas poéticas, tais como a de Christian Boltanski ou de Annette Messager, artistas com os quais Renato mantém estreito convívio há alguns anos, antes como aluno e hoje como assistente, e que são referências. Se tomarmos a liberdade de usar essa expressão para a literatura de memórias, outras mitologias individuais ressoam igualmente em seu trabalho, como as de autores nordestinos, Graciliano Ramos ou José Lins do Rego, por exemplo, sem esquecer repentistas e cordelistas – enfim, o contador de histórias. Histórias, cuja tradição é ainda viva na cultura nordestina e que, apesar de elididas, são partes constitutivas de seu trabalho, mesmo que sob forma de ausência, de lacunas. O entrecruzamento de discurso e imagem, público e privado, ficção e realidade compõe seu “mapa” ou, ainda, seu arquivo de cópias de cópias, cujo bibliotecário saiu de férias há muito, muito tempo…