QUE NOSSO NOME NÃO CAIA NO ESQUECIMENTO | 2021

Galeria Anita Schwartz, Rio de Janeiro, Brasil
Curadoria: Bianca Bernardo

Descrição das obras

1 – A memória é a costureira, e costureira caprichosa. A memória faz a sua agulha correr para dentro e para fora, para cima e para baixo, para cá e para lá. Não sabemos o que vem em seguida, o que virá depois | 2007  

Essa veste foi criada com a ideia de apontar aquilo que se deseja lembrar: para não esquecer. Foi realizada conjuntamente na Cooparoca, cooperativa que reunia, na Rocinha, 80 mulheres-artesãs, representantes de todas as mulheres as quais essa Veste-Memorial é dedicada. A sua inclusão nesta exposição – que trata da violência estrutural no Brasil – se dá pela necessidade de denunciar, sempre, a violência contra a mulher, amplificada no período da pandemia do Covid-19.

    • etiquetas em algodão com iniciais bordadas industrialmente; veste em algodão
    • 150 x 50 cm
    • EXPOSIÇÕES: ‘Amor’, Casa Museu de Benjamin Constant, Rio de Janeiro, Brasil / Galerie Caroline Vachet, Lyon, França / ‘Retalhar’, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, Brasil
    • acesse aqui a página da obra

2 – A história explica, mas não justifica | 2020-21  

Garatujas, traços, borrões, números, notícias e palavras se sobrepõem confusa e minunciosamente sobre mais de uma centena de folhas de papel, sinalizando a minha revolta diante da condução política da pandemia de Covid19 no Brasil, quando o descaso pela vida ficou mais do que evidente, multiplicando absurdamente o número de mortes que poderiam ter sido evitadas no país.

3 – Folhas do confinamento | 2020-21 

Série de desenhos em linhas, pontos e borrões, realizados desde o primeiro momento em que a pandemia do Covid19 nos levou ao isolamento social, alternando gestos de aflição e raiva com outros relacionados à tentativa de apaziguamento e autocontrole.

    4 – Não somos um, somos vários | 2016  

    Os mais de 1.100 nomes relacionados nesta obra colocam em destaque o impacto do que se costumou chamar a descoberta do Brasil, e no contexto desta exposição, escancara o genocídio dos povos originários, ainda em curso no país, como evidenciou pandemia de Covid-19: o grande mapa torna presente a ausência de vidas e culturas e o consequente empobrecimento do nosso processo civilizatório.

    5 – Indiozinho | 2003  

    O bordado “Indiozinho” é um dos meus primeiros desenhos feitos com linha e agulha, tendo origem na série “Primeiros bordados”. Nesta exposição ocupa posição central no espaço da Galeria – ao lado do grande mapa do Brasil que reúne o nome de aproximadamente 1.100 povos originários -, de onde observa o movimento de todos os que ali entram e saem, e pergunta: qual o valor da vida no Brasil?

    6 – Para você que sabe quem é | 2018  

    Esses pontilhados são uma derivação dos meus mapas do acaso: mesmo papel artesanal, menor formato, pedindo intervenção delicada. E assim vão surgindo abstrações, vistas aéreas, territórios distantes.

    7 – Mapas do acaso | 2013 (em processo)  

    Nesses desenhos vou criando territórios nos relevos naturais do próprio papel. O círculo, elemento geométrico recorrente no meu trabalho, aparece aqui como fantasia: clarões-fantasmas abertos na floresta para abrigar aldeias indígenas de povos que não existem mais, vítimas de um projeto colonizatório que até hoje insiste em permanecer.

    • série de desenhos em nanquim vermelho sobre papel artesanal
    • 50 x 40 cm
    • EXPOSIÇÕES: ‘Rio’, Salt Fine Art Gallery, Laguna Beach, EUA
    • acesse aqui a página da obra

    8 – O fim desde o início (2ª paleta de cores) | 2019  

    Nesta segunda paleta de cores, linhas de costura reduzidas a pó e transformadas em minúsculas bolinhas de seda, formam territórios imaginários, aonde as concentrações de vermelho fazem alusão aos problemas ambientais que enfrentamos atualmente no Brasil, assim como, à crescente ameaça aos direitos à terra por parte dos povos originários.

    9 – Alvos da violência | 2020-21 

    Desde 2009 venho desenhando, em diferentes suportes e composições, esses alvos da violência, impressionado pelo noticiário que anuncia as mortes pelas chamadas balas perdidas, que sabemos, atinge majoritariamente jovens pobres e negros. Nesta versão que ora apresento, comecei a contar – traço a traço – o número crescente de mortos por arma de fogo a cada ano no Brasil, seguindo os dados disponibilizados no Mapa da Violência, desde 2018.  Na apresentação da obra, os anos são embaralhados, e os números de mortos são percebidos na variação da dimensão de cada alvo, parcialmente visível, no manuseio e na transparência do papel.

    10 – Cadernos do confinamento | 2020-21  

    Série de desenhos em linhas, pontos e borrões, realizados desde o primeiro momento em que a pandemia do Covid19 nos levou ao isolamento social, alternando gestos de aflição e raiva com outros relacionados à tentativa de apaziguamento e autocontrole.

    11 – É preciso que se esqueça de tudo aquilo que lhe foi ensinado | 2016  

    A semelhança do mapa hídrico da América do Sul com o coração humano é acentuada pela apresentação desses primeiros esboços do continente (séculos XVI e XVII), desenhados por europeus na disputa pelo território. A linha vermelha – escolhida para bordar – acentua a relação com o órgão central do nosso corpo, e com uma certa ideia de afeto, mas também com a violência desta disputa territorial que teima em permanecer, e a comprometer o processo civilizatório do país.

    12 – Vermelho | 2011  

    Apesar da delicadeza do bordado, que se dá com várias voltas da linha em torno da agulha, antes de perpassar o tecido, esta obra nos faz pensar em nódoas de sangue: uma violência sofrida, imposta ou voluntária. Alude, também, a ideia de território em chamas, e por esta razão, faz parte desta exposição, juntamente com outros mapas históricos e imaginados.

    Fotografia: Gabriel Marigo

    TEXTO

    QUE NOSSO NOME NÃO CAIA NO ESQUECIMENTO | 2020-21

    Bianca Bernardo

    Novembro 2021

     

    No princípio, não existia a América. Sempre fomos muitos, diversos, imensos. Quando chegaram os exploradores, logo redigiram cartas e livros contando que haviam feito uma grande descoberta e que conquistaram uma “ilha” no meio do oceano Atlântico.Das perversas ironias que nos rodeiam desde o início dos tempos modernos, uma delas diz respeito ao próprio nome escolhido para renomear a terra sequestrada.  Marcando como uma cicatriz profunda, da alcunha de vergonhosa exploração, surge o nome de um país Brasil. Um passado ferido que fere como brasa ardente aos olhos dos guardiões da floresta e que continua seu rastro de destruição, expropriação e desmatamento, não se perguntando quando é o tempo de parar, porque nunca deveria ter acontecido. Mas os olhos dos guardiões da floresta nunca deixaram de arder.

    Na exposição “Que nosso nome não caia no esquecimento”, primeira individual de Renato Bezerra de Mello na galeria Anita Schwartz, o artista enfrenta com sensibilidade a difícil tarefa de olhar para o seu tempo através dos prismas que contam a história da violência que, há mais de cinco séculos, silencia vidas e culturas em resistência. Renato impregna então a exposição com a cor vermelha para evidenciar um Brasil manchado pelo sangue e pela brutalidade constante das formas de ganância, de injustiça social, do preconceito e da intolerância.

    O desejo por investigar a noção de uma abordagem da hospitalidade como acolhimento do outro, a partir do reconhecimento do estrangeiro que reside em si mesmo, é um dos apontamentos abissais da obra “Não somos um, somos vários”. A compreensão de que a hospitalidade se faz entre relações paradoxais da convivialidade com as alteridades expande os sentidos de uma ideia fantasiosa da mesma como acolhimento dócil e absoluto. A importância da percepção do gesto da hospitalidade, como explica Alain Montandon, consiste, antes de tudo, em afastar uma hostilidade latente na visão que se faz do hóspede/estrangeiro. Na composição da obra, o artista se apropria de antigos cartões de visita fabricados para os seus pais e imprime em seu dorso os nomes de mais de 1.100 povos indígenas. O mapa do Brasil refeito no espectro memorial do seu território original, conforme listagem de pesquisa do Museu do Índio do ano de 1998, no qual confrontamos os horrores do etnocídio no impacto do projeto colonial.

    A inquietação de Renato diante da atual crescente banalidade das ameaças de morte no Brasil transformam-se em desenhos abstratos e simbólicos, linhas, manchas e garatujas. Na exposição, um caderno sem costura está pousado sobre a mesa, na qual pode-se perceber mandalas vermelhas, em diferentes tamanhos, produzidas traço a traço, folha por folha. “Alvos da Violência”, é uma obra que representa a memória de cada uma das mortes por armas de fogo no Brasil, ano a ano, seguindo os dados oficiais do Mapa da Violência, disponibilizados publicamente desde 1980.

    Em “Cadernos do Confinamento”, o artista dedicou-se a desenhar em pequenos cadernos os sentimentos de desassossego diante da pandemia do Covid-19, recorrendo ao universo das inscrições para traduzir em gestos o medo e a tristeza vividos coletivamente desde o primeiro decreto de distanciamento social e lockdown. Em paralelo, Renato continuou a desenvolver a série “A História explica, mas não justifica”, iniciada em 2020. Um conjunto de 91 desenhos são dispostos na galeria como a barra vermelha dos noticiários de jornalismo que, ao longo dos últimos quase dois anos, apresentaram diariamente o incontrolável número de mortes pelo Coronavírus. Após apuração das investigações, é revelada a confirmação do grande descaso e incompetência do governo em lidar com a pandemia no Brasil, o que trouxe um sobrepeso de revolta e indignação ao inenarrável sentimento de luto por todas as vidas perdidas e às milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas. Diante do desespero e do pranto comum, Renato verborragia os gritos e as palavras de levante, entoadas em coro nas ruas, no íntimo da existência, desde as janelas.

    Não há modo de romantizar a violência sangrenta do dia que se fez noite eterna. Vamos buscando, como Renato, práticas de cura e cuidado, entre fabulações e processos de transmutação através da arte, atravessando as opressões e o adoecimento pelo cultivo ancestral dos modos de viver em liberdade. Seguimos assim a travessia, imaginando e sonhando futuros possíveis, adiando o fim do mundo por mais um dia.