ENTRE CÉU E ÁGUA | 2016

Paço Imperial do Rio de Janeiro, Brasil

Curadoria: Marcelo Campos

Descrição das obras

1 – Para ler as correntes do oceano enquanto a chuva martela as janelas da casa | 2014

Já há alguns anos, ou talvez desde sempre, venho observando a praia e o mar de Boa Viagem, lugar onde nasci e onde ainda hoje me reconheço quando ali retorno, depois de uma partida de mais de trinta anos. Talvez por isso, interessam-me mais os dias de chuva, quando as nuvens cobrem quase tudo e a chuva martela, insistentemente, as janelas da casa, transformando a paisagem.

  • três vídeos com 10’, projeção simultânea em loop, edição de 5 + 2 PA
  • concepção e filmagem: Renato Bezerra de Mello
  • edição: Daniel Santos
  • acesse aqui a página da obra

 

2 – É preciso que se esqueça tudo aquilo que lhe foi ensinado | 2016

Alguns exemplares dos primeiros mapas do continente sul-americano – selecionados pela semelhança com o coração humano e colocados na sua escala – foram bordados por mim sobre peças de linho que pertenceram ao meu pai.

3 – Entre o verde e o violeta | 2014-16

Esta obra se relaciona com outras que têm origem no movimento de colorir, em infinitos tons de azul, diferentes tipos de papel, numa alusão às superfícies marinhas. O papel das etiquetas, garimpadas em papelarias da cidade do Porto, é o último a absorver a tinta das canetas hidrográficas, cujo feltro, uma vez seco, torna-se matéria de outra obra.

4 – Umbigo do mar | 2016

Esta obra surgiu da leitura dos infortúnios dos antigos navegadores, quando um deles relata que meteu-se num movimento de águas muito violento, como se fosse o “umbigo do mar”: de imediato visualizei esta peça, realizada com as aparas de rolos de papel vegetal.

5 – Terra plana | 2016

Ainda no início das grandes navegações, persistia a ideia da terra plana, que nesta obra vai surgindo pouco a pouco, nos pequenos mapas resultantes do desmonte de canetas hidrocor, cujas partes vou distribuindo no fundo das caixinhas de papel.

6 – Aparas | 2014

Do recorte de porções inúteis de folhas de papel guardadas em rolo, surgem espirais: um turbilhão de água que se forma no mar, no cruzamento contrário de suas correntes.

  • papel vegetal de diferentes gramaturas e dimensões, tinta de caneta Letraset 
  • 80 x 120 x 40 cm
  • EXPOSIÇÕES: ‘Carpe Diem Arte e Pesquisa’, Lisboa, Portugal
  • acesse aqui a página da obra

7 – Corte | 2016

Essas folhas coloridas de papel vegetal guardam a memória da elaboração de diferentes trabalhos: usadas inicialmente como papel-base, foram pouco a pouco se tornando obra, pela sua potência visual. A disposição das folhas, por sua vez, me fazem pensar no oceano que recorta, em dois territórios, os continentes sul-americano e africano.

8 – Um/dois, Dois/dois | 2016

Esses cadernos são fichas de leitura, que reunem desenhos e textos sobre assuntos diversos, mas correlacionados: o terremoto de Lisboa, em 1755; a vinda da Biblioteca dos reis de Portugal para o Rio de Janeiro, no início do século XIX; as grandes navegações portuguesas, séculos antes; e mais distante ainda, o medo e a fantasia que alimentou os relatos dos viajantes marítimos, desde os tempos da Antiguidade.

9 – Deslocamentos | 2004-05

Com papel-carbono transferi e gravei, sobre finas folhas de papel cristal, os traços que desenham um mapa-múndi imaginário, que percorri a partir da leitura de uma correspondência dos anos 1940, trocada entre meu pai e meu avô. Esta obra foi apresentada em outras exposições, numa configuração diferente, sendo aqui a primeira vez que foi instalada sobre o chão.

10 – O sonho da razão produz monstros | 2016

A criação de monstros marinhos antecede em muito o período das grandes navegações: remonta ao mundo antigo e talvez, permaneça ainda hoje no imaginário dos homens do mar. Inicialmente descritos, passam a ser desenhados e copiados, com pequenas transformações, em mapas de diferentes épocas, assim como nos meus bordados.

11 – Nua | 2016

Da observação do mar, deu-se o encontro com esta mulher, que pela manhã muito cedo, passeava pela praia, e vez por outra, se banhava. Nua, parece uma imagem de centenas de anos atrás, como as que só conhecemos através dos relatos dos primeiros viajantes europeus ao Brasil.

    • ampliação em papel algodão, edição de 5 fotografias + 2 PA
    • 80 x 110 cm (individual) | 80 x 350 cm (conjunto)
    • acesse aqui a página da obra

12 – Não somos um, somos vários | 2016

Os mais de 1100 nomes descritos nesta obra, colocam em evidência o impacto negativo, para os povos indígenas, do que se costumou chamar a descoberta do Brasil: a maior parte dessas etnias não se encontra mais entre nós. Seus nomes estão dispostos em acordo com a sua localização territorial, conforme lista encontrada no Museu do Índio, de 1998.

13 – O que sinto não sei dizer o que é | 2016

Para a realização desta obra, lanço mão do feltro de canetas hidrográficas, que utilizo para colorir papéis em infinitos tons de azul. Mesmo livre da tinta, o feltro ainda guarda um pouco da cor que absorveu, e se apresenta como material plástico, especialmente quando é desmanchado em fios, e assume uma outra aparência, vaporosa.

14 – Correr no azul à busca da beleza | 2014

Da observação do mar – e do sonho das bibliotecas perdidas da Antiguidade – surgiu este acúmulo de rolos de papel cobertos por diferentes tons de azul, numa alusão às infinitas cores e ao movimento incessante dos mares e oceanos.

TEXTO

ENTRE CÉU E ÁGUA

Marcelo Campos

Setembro, 2016

 

É preciso que se esqueça de tudo aquilo que lhe ensinaram os mapas tão completos, e que comece a apagar sobre a carta que tem na cabeça, a forma, a aparência geral, até a presença do continente americano.  Aquele que souber trazer para a sua alma a obscuridade e as incertezas daquele século distante poderá ressentir a surpresa, o entusiasmo de toda uma geração quando, naquilo que era até então o infinito, se esboçou, pouco a pouco os primeiros contornos de uma terra insuspeita.

(Stefan Zweig. Amerigo)

 

Vida e narração configuram uma existência indissociável. Fatos narrados e vividos se confundem na emissão da voz, conjecturando-se ofertas de sentido para a troca de confidências, a organização do caos da experiência, o drama dos sentimentos cotidianos.    De outro modo, os desenhos da escrita tecem sinais para espectadores privados (nos diários, nas cartas) ou públicos (em ofícios, leis, livros). Escrita e desenho se fundem, por exemplo, na tentativa colonialista de criar limites em terras, ilhas, continentes nas práticas cartográficas.

A exposição “Entre céu e água”, de Renato Bezerra de Mello, parte do impacto dessa troca intersubjetiva entre relato, empiria e imaginação, prática recorrente nos trabalhos do artista. Ao se fundamentar nos modos de estender o tempo da práxis, o artista procura as ações diretas, como desenhar, coser, escrever e, a partir disso, combate o dispêndio, aproveitando-se dos restos, das sobras de papel, das cargas de canetas, dos avessos, dos invólucros.

Aqui, o artista se interessa pela nomeação da América, fato que confere à Américo Vespúcio não somente uma homenagem, como era comum nos tempos de Colombo, mas o coloca na condição de narrador que não atribui o achamento de terra ao engano, ou como desvio para se chegar às Índias, como na história de Cabral. Renato pesquisou mapas de diversas épocas e os colocou em bordados sobre linho, exibindo-nos modificações morfológicas dos imaginários de diversas épocas, alterando-os, consideravelmente, com a inclusão das duas costas, Atlântico e Pacífico.

Ao mesmo tempo, nos bordados, vemos os monstros marinhos das primeiras cartas náuticas. Tais relatos nos impactam tanto pela construção imaginária de seres impossíveis, quanto, depois de aportar, pela difícil aceitação dos que já estavam em terra. Em um dos trabalhos, os nativos são referenciados com um mapa do Brasil formado por mais de mil etnias ameríndias. 

Na exposição, Renato Bezerra de Mello também se interessou pela possibilidade de agir no pequeno, nos gestos manufaturados, estimulado por outra grandiosa história, a de uma biblioteca pertencente à família real portuguesa que atravessaria o Atlântico quando da vinda de d. João e de parte da corte, em 1807. Com os percalços da pressa de embarcar, diante das iminentes invasões de Portugal por tropas francesas, como nos explica Lilia Moritz Schwarcz, a biblioteca foi deixada no porto de Lisboa. Porém, o príncipe regente exigiu a vinda da Real Livraria três anos depois. 

Renato Bezerra de Mello seleciona, a partir dessa impactante imagem, um relato: a carta do bibliotecário Luiz Joaquim dos Santos Marrocos ao pai, um dos embarcados na travessia, narrando as angústias, o horror, o incômodo da empreitada.

Com isso, vemos céu e água metaforizarem-se em trabalhos pontuais e instalações em que “avistamentos” diversos criam o imaginário curioso da expectativa pelo porvir, em mapas, cores marítimas, monstros, palavras que misturam as vozes do invasor e dos nativos. A narrativa, assim, exterioriza-se, enviesadamente, em cargas de canetas azuis, etiquetas, papéis amarelecidos, textos. Tais exterioridades são partilhadas com o espectador como cartas, apresentadas ou esquecidas, evidenciadas na individualidade ou superpostas em opacidades.

A exposição “Entre céu e água” trata, sobretudo, da possibilidade do relato em conferir sentido aos intervalos de tempo quando, aparentemente, não percebemos o que se passa.