Michaela Blanc

Revisitado em julho, 2018

“Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida.”

Antonio Candido

No início do verão de 2016, a incumbência de compor uma resenha comentando espaços de trabalho do artista me foi provocada pelo professor Marcelo Campos durante as aulas do curso, intitulado por ele, Curadoria e Construção do Texto Crítico no Brasil. Ministrados na Casa França-Brasil e divididos em seis etapas, esses encontros serviram como plataformas experimentais de estruturas narrativas e modos de se comunicar linguagens.

Das pequenas arbitrariedades diárias, tomei a decisão de percorrer um estúdio já conhecido, porém visto em outro contexto. Embora, talvez, tenha burlado o sistema, a natureza do que encontrei foi da ordem do novo.

Visitar ateliê de artista, acredito, é desempenhar a empreitada do mergulho profundo no universo das suas inquietações, experienciando forças que o levam a arquitetar um ou outro projeto. Vivenciar a esfera em que o artista nos permite acompanhar suas garantias e conflitos, abrindo brechas ao mesmo tempo, para elaboração e desconstrução de cenários que permeiam os trabalhos.

Na primeira passagem pelo laboratório de Renato Bezerra de Mello, lembro do espanto com a disposição do espaço: sala vazia, a mesa ao centro, e as três janelas que dão vista para toda a praça da Cinelândia, como destaque. Desta vez, pousadas sobre a mesma mesa, estavam: tramas, mapas, rolinhos, botões, caixinhas, cacos de vidro colorido e curiosas cadeiras antigas diferentes das quais havia visto na ida passada.

A sala ordenada da última vez cedeu lugar as caixas vazias que aguardam o encerramento da exposição individual, que ocupava as galerias Paço Imperial até àquela data. No segundo cômodo a mapoteca estava com a gaveta aberta, mas o artista apontava para a pilha de papéis finos com incontáveis bolinhas vermelhas desenhadas, em outro canto. A cada folha, uma bolinha deformada – muitas apenas para os olhos de Renato -. Essa coleção de erros foi revisitada e seria encadernada junto de outros blocos encontrados no fundo da mesma gaveta aberta.

Pergunto se conseguiria trabalhar ali e ele comentou sobre a ansiedade pela qual estava sendo atacado. Estava produzindo em casa, tirou férias de si mesmo. Percebi que o nervosismo causa ruído no silêncio conquistado pelo exercício diário do trabalho. No período de metódica arrumação é sofrido se organizar.

É neste espaço que Renato fica imerso num processo solitário promovendo operações reprisadas muitas e muitas vezes. Como o corte de pequenos confetes em carbono feitos por furadores de papel, as resmas contendo séries de bolinhas e quadrados ora desenhados, ora furados deixando que camadas e transparências das diversas folhas empilhadas possam formar uma pista de seu significado simbólico.

Nada no espaço é gratuito ou avulso, todo o material ao redor se apresenta como organismo de uma coletânea formada por séries que vão se entrelaçando de acordo com a passagem do tempo e de pequenas ações cotidianas. O artista fala de Paris, da solidão que aprendeu a cultivar e mostra o arquivo dos postais em que destinatário e remetente eram ele próprio. Uma base cartográfica dos interesses do imigrante andarilho. Neste ateliê trava uma batalha com a própria disciplina ao assumir a tarefa de alongar o tempo.

O artista usou a palavra acumulação mais de uma vez e acredita que o hábito da coleta vem da infância. Quando criança separava os selos das cartas que chegavam ao endereço da família, no Recife, e os guardava: “Todos os selos estão ali”, apontando o dedo pra alguma prateleira. Também recolhia e depositava no armário os maços vazios dos cigarros de seu pai.

Sua ligação com a numerosa família pernambucana é forte e segue refletindo diretamente em alguns trabalhos como as cartas trocadas entre seu pai e avô, durante a década de 1940, e reproduzidas em carbono, copiadas cinco vezes como lembrança a cada uma de suas irmãs. Ou a toalha de mesa e os guardanapos em linho ofertados por sua mãe quando arrumou mudança para a cidade do Rio de Janeiro. Os tecidos viajaram de volta algumas vezes para serem bordados por membros da família, vizinhos e amigos de amigos. Outro exemplo do elo afetivo seria o projeto Visionários, na montagem pendem do teto centenas de monóculos onde é possível enxergar retratos doados de antigos álbuns da família; parentes que se tornaram íntimos apenas pela memória, real ou inventada, de quem lhe contou suas histórias.

A perenidade dos papéis, a tinta ressecada da caneta, a fragilidade do tecido, a fotografia desmemoriada e a linha solta do bordado são acontecimentos determinados pela imprevisibilidade do tempo. A produção de Renato Bezerra de Mello parece um aviso de que tudo tende a desaparecer. É preciso se atar ao outro para nos reconhecermos e salvarmos os fragmentos da memória. No silêncio daquele oitavo andar Renato Bezerra de Mello aprende a criar e prolongar intervalos de tempo.