Bianca Bernardo

Novembro, 2021

No princípio, não existia a América. Sempre fomos muitos, diversos, imensos. Quando chegaram os exploradores, logo redigiram cartas e livros contando que haviam feito uma grande descoberta e que conquistaram uma “ilha” no meio do oceano Atlântico.

Das perversas ironias que nos rodeiam desde o início dos tempos modernos, uma delas diz respeito ao próprio nome escolhido para renomear a terra sequestrada.  Marcando como uma cicatriz profunda, da alcunha de vergonhosa exploração, surge o nome de um país Brasil. Um passado ferido que fere como brasa ardente aos olhos dos guardiões da floresta e que continua seu rastro de destruição, expropriação e desmatamento, não se perguntando quando é o tempo de parar, porque nunca deveria ter acontecido. Mas os olhos dos guardiões da floresta nunca deixaram de arder.

Na exposição “Que nosso nome não caia no esquecimento”, primeira individual de Renato Bezerra de Mello na galeria Anita Schwartz, o artista enfrenta com sensibilidade a difícil tarefa de olhar para o seu tempo através dos prismas que contam a história da violência que, há mais de cinco séculos, silencia vidas e culturas em resistência. Renato impregna então a exposição com a cor vermelha para evidenciar um Brasil manchado pelo sangue e pela brutalidade constante das formas de ganância, de injustiça social, do preconceito e da intolerância.

O desejo por investigar a noção de uma abordagem da hospitalidade como acolhimento do outro, a partir do reconhecimento do estrangeiro que reside em si mesmo, é um dos apontamentos abissais da obra “Não somos um, somos vários”. A compreensão de que a hospitalidade se faz entre relações paradoxais da convivialidade com as alteridades expande os sentidos de uma ideia fantasiosa da mesma como acolhimento dócil e absoluto. A importância da percepção do gesto da hospitalidade, como explica Alain Montandon, consiste, antes de tudo, em afastar uma hostilidade latente na visão que se faz do hóspede/estrangeiro. Na composição da obra, o artista se apropria de antigos cartões de visita fabricados para os seus pais e imprime em seu dorso os nomes de mais de 1.100 povos indígenas. O mapa do Brasil refeito no espectro memorial do seu território original, conforme listagem de pesquisa do Museu do Índio do ano de 1998, no qual confrontamos os horrores do etnocídio no impacto do projeto colonial.

A inquietação de Renato diante da atual crescente banalidade das ameaças de morte no Brasil transformam-se em desenhos abstratos e simbólicos, linhas, manchas e garatujas. Na exposição, um caderno sem costura está pousado sobre a mesa, na qual pode-se perceber mandalas vermelhas, em diferentes tamanhos, produzidas traço a traço, folha por folha. “Alvos da Violência”, é uma obra que representa a memória de cada uma das mortes por armas de fogo no Brasil, ano a ano, seguindo os dados oficiais do Mapa da Violência, disponibilizados publicamente desde 1980.

Em “Cadernos do Confinamento”, o artista dedicou-se a desenhar em pequenos cadernos os sentimentos de desassossego diante da pandemia do Covid-19, recorrendo ao universo das inscrições para traduzir em gestos o medo e a tristeza vividos coletivamente desde o primeiro decreto de distanciamento social e lockdown. Em paralelo, Renato continuou a desenvolver a série “A História explica, mas não justifica”, iniciada em 2020. Um conjunto de 91 desenhos são dispostos na galeria como a barra vermelha dos noticiários de jornalismo que, ao longo dos últimos quase dois anos, apresentaram diariamente o incontrolável número de mortes pelo Coronavírus. Após apuração das investigações, é revelada a confirmação do grande descaso e incompetência do governo em lidar com a pandemia no Brasil, o que trouxe um sobrepeso de revolta e indignação ao inenarrável sentimento de luto por todas as vidas perdidas e às milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas. Diante do desespero e do pranto comum, Renato verborragia os gritos e as palavras de levante, entoadas em coro nas ruas, no íntimo da existência, desde as janelas.

Não há modo de romantizar a violência sangrenta do dia que se fez noite eterna. Vamos buscando, como Renato, práticas de cura e cuidado, entre fabulações e processos de transmutação através da arte, atravessando as opressões e o adoecimento pelo cultivo ancestral dos modos de viver em liberdade. Seguimos assim a travessia, imaginando e sonhando futuros possíveis, adiando o fim do mundo por mais um dia.